Dentista negra relata preconceito de clientes e da sociedade

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DENTISTA-NEGRA

Preta, mulher, dentista. Por onde começar? Em que momento essas três palavras se cruzaram para formar um único ser?

Bom, para ser sincera, se eu fosse iniciar pela linha de partida da minha, da nossa, de que todas as mulheres pretas sofrem de racismo e preconceito, acho que não seria pretensão minha dizer que com certeza daria um livro.

Então, iniciarei pelo objetivo principal, a minha presença, sentimento e dia a dia acadêmicos e, por fim, minha condição de formada.

Antes de entrar na faculdade, passei por tudo que todo mundo passa: fiz vestibular, estudei , estudei e estudei mais um pouco, mas uma coisa me intrigava. Na minha época, a UFF nem tinha cota e as pessoas insistiam que eu tinha conseguido minha vaga em odonto por meio dela . Em tempo: eu não teria vergonha nenhum de expor isso ou de ser cotista, mas é um estigma, minhas amigas, e isso nos faz carregar um preço alto.

Continuando no período caloura de odontologia, tive que ouvir pérolas do tipo: essa menina passou mesmo para uma faculdade? A filha da Clara que vende roupa aqui? Duvido, deve estar pedindo dinheiro!

Claaaaro que eu ia me pintar toda, andar debaixo do sol quente para fingir algo que não conquistei.

Em outro momento, a mesma Clara das roupas – mais conhecida como minha mãe –, passou por outra situação no elevador do prédio em que, agora, morávamos (sim, agora que saímos lá do pé da comunidade, pegávamos elevador, incomodávamos a sociedade tijucana, uma das mais preconceituosas com a qual que já lidei). Minha mãe conversava com a moça da cobertura, que entrava sempre com muita altivez no elevador e pedia para “marcar cobertura por favor” (deixando claro que aqui não tem ascensorista); ela falava a respeito de faculdade, sem mencionar que eu já tinha passado, quando esboçou dizer que eu queria fazer odontologia, a moça da cobertura soltou a pérola: “não deixa ela tentar odontologia não, isso é muito difícil, não é profissão de preta, manda ela fazer enfermagem”. Uma observação deve ser feita: ela era preta e não fazia enfermagem nem os filhos dela.

Cheguei aos meus dias de acadêmica, além de reiterar todo santo dia que eu não era cotista (porque isso – pra uma classe universitária que mal aceitou a Leia Áurea – era uma espécie de “zoação”), eu me deparei com uma turma, quiçá um curso inteiro com menos de 20% de negros. Dessa forma, lidar com “brincadeiras”, “gracinhas” “ ah, Elis só estamos brincando” não foi algo raro, pelo contrário, qualquer animal, pessoa, artista, homem, mulher, que fosse preto era motivo de comparações e as tais brincadeirinhas. E sabe aquela máxima quanto mais você se importar é pior? Pois é, teve um dia que dei um basta, quando ousaram me comparar ao mascote – babuíno – do curso. Não, vocês não têm esse direito, cada indíviduo é único e deve ser respeitado, eu aprendi isso no Ensino Fundamental, não é possível que tem escola que não ensina isso.

Quatro anos e meio se passaram, e foram quatro anos de olhares atravessados de professores quase que gritando: “ se esforça mais que você é preta” ou “ não está tão bom, porque você é preta”. No curso de Odontologia da Universidade Federal Fluminense há professores maravilhosos, como o professor Cauby de Prótese Dentária – negro, professor titular e coordenador da disciplina de Prótese Total e com o qual eu mais me identifiquei no meu curso. Mas saibam também que há professores que agem dessa forma com alunos negros sem nenhum pingo de constrangimento.

Foram anos de olhares de “socorro“ de pacientes que já vinham assustados por serem atendidos por aluno; e por uma aluna preta, com o cabelo que mal cabia na touca, falava alto, ria alto, sorria alto então… “Não sei se você sabe mesmo o que está fazendo, é melhor chamar seu professor não?”

Agora sim, cheguei lá doutora, agora meu diploma vai falar mais alto, né? Não, vai não. Eu consigo enumerar as frases mais ouvidas, porque as situações foram mais repetidas do que a quantidade de vezes que eu falei “bom dia”, “meu nome é dra. Elis”:

Você por acaso é a dentista?
Você pode chamar a dentista?
Você não pode fazer o trabalho da secretária não?
Você veio para a vaga de ASB*, né? (ASB = Auxiliar de saúde bucal). ( Essa eu acho que está escrito na minha testa)
Você não tem cara de dentista!
A vaga era sim para aqui em Ipanema (que deveria se chamar Clínica Ariana de Ipanema), mas agora é em Caxias (Baixada Fluminense do Rio de Janeiro). Obs: antes da entrevista eu preenchia a vaga com louvor, mas acho que não era loira o suficiente.
Você já tem CRO? Tem certeza? Não é ASB não?!

Essa e outras são situações diárias que vivi e vivo todo santo dia.. É claro que tenho pacientes que compensam tudo que tenho que lutar para alcançar meus objetivos, para levar saúde para aqueles que precisam, para devolver seus sorrisos. Eu me sinto muito orgulhosa quando eles me abraçam, quando eles agradecem, quando eles dizem que eu mudei a vida deles. Não importa a idade, a cor, a condição social dessas pessoas porque elas são boas de coração, me viam além da cor, viam a minha capacidade técnica e toda a dedicação ao que faço com muito carinho.

Quando finalmente decidi escrever isso aqui, foi porque precisava falar um pouco do que eu sentia, do que eu passava, porque isso precisava ser falado, precisa ser discutido, e fico feliz que seja nesse espaço maravilhoso, e porque sei que posso servir de espelho pra outras meninas negras que querem fazer um curso na área da saúde, e se sentem incapazes de tentar. Para eu parar, e para pararmos todas de sermos a “preta perseguida”, a “exagerada”, a “todo mundo gosta de você “ , “todos somos iguais “ , “ você nem é tão preta assim “, “seu cabelo nem é tão ruim assim “ “seus traços são tão finos para uma negra” , “ você é uma moreninha bonita” . Chega de hipocrisia, né? Sou preta, meu cabelo é crespo, meu nariz é de batata sim, e eu sou doutora também, muito prazer!

FONTE: http://blogueirasnegras.org/2016/02/17/voce-pode-chamar-a-dentista/

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